Alteridade: A natureza opressora e oprimida em A mulher do garimpo

Maio de 2018

Cientistas interessados no passado o viam até a segunda metade do século XX como peça de museu sob uma ótica temporal imutável. Estudos de história e de memória cultural já assumem a interferência de paradigmas do presente na angulação de fatos recentes ou remotos. A mulher do garimpo (1976), de Nenê Macaggi, considerado o romance do extremo Norte do país, não pode fugir deste filtro.

A problemática começa pelo enredo cuja trama é dispersa em longas descrições históricas e de costumes regionais que não passam de efeito decorativo. O tom descritivo fracionário dizima a curiosidade no destino afortunado ou desafortunado dos personagens. A narrativa almeja ganhar ares realistas e factuais, todavia frustra suas próprias pretensões ao convergir com o propósito do apelo folhetinesco da vida sendo vivida, mas longe de ser fiel ao cotidiano por conta de sua prolongada retórica. Seu mérito é ser a produção ficcional mais expressiva do estado de Roraima na segunda metade do século XX. No entanto, as produções dos compositores do Grupo Roraimeira merecem mais legitimidade devido às odes aos cenários naturais da região.

Os problemas em torno da trama se avolumam quando sinalizamos a questão de gênero envolvida no caso da protagonista subjugada ao arremedo de assumir uma identidade masculina para viver em espaços de violência e suas implicações ambientais. Maria Moura [Memorial de Maria Moura da escritora Rachel de Queiroz publicado no ano de 1992] passa por crise de identidade, porém o conflito se potencializa no caso da personagem de Nenê Macaggi devido à crônica representação ecológica que a acompanha.

Se por um lado, ela se traveste de homem com a pretensão de ser aceita e não sucumbir à propensão de agressividade recorrente e gradativa típica dos espaços do garimpo, por outro lado, a autora camufla a natureza como humano a se vingar de atos violentos contra suas espécies da fauna e da flora, seguindo uma tradição de representações ecológicas problemáticas na literatura brasileira da qual faz parte Euclides da Cunha e seu livro-reportagem acerca da Amazônia [À margem da história, de 1909]. Desta forma, a construção da identidade camuflada “contamina” o enredo tornando o meio ambiente vítima da ideologia antropocêntrica, precarizando ainda mais os esteriótipos da narrativa. Assim como a personagem forja ser durona e ser aceita num espaço masculinizante, a “mãe natureza” se despoja dos atributos de acolhedora e cuidadora assumindo as expectativas de força e brutalidade da cultura patriarcal.

A narrativa tenta ganhar sobrevida apenas no último capítulo, no qual a autora denuncia as perspectivas do amazônida fadado ao progresso capaz de ampliar a destruição do meio ambiente. Do mesmo modo que a protagonista reassume o papel feminino, os espaços naturais recaem na problemática representação de vítima da violência humana comum em tempos de modernidade. O enredo deixa de sinalizar o arranjo literário da floresta se livrando de esteriótipos de homem algoz ou mulher vítima. Em tempos extremos de escassez e falta de recursos naturais, consequências das interferências dos desmatamentos e das ações poluidoras, a natureza está precisando ser ela mesma.

Simão Farias Almeida

Referência bibliográfica
MACAGGI, Nenê. A mulher do garimpo: o romance do extremo norte do Amazonas. 2 ed. Boa Vista: Gráfica Real, 2012. 389p.

Revisão de Ana Lúcia de Sena Cavalcante

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