A barata (2009) – Melhores contos I

Simão Farias Almeida

- É bobagem sua querer ir embora, aqui temos um apartamento imenso só pra nós duas com comida e bebida à vontade, você já bebeu menina? É coisa de gente grande... – falou Glória com medo de ficar sozinha no apartamento já que o marido viajara a negócios.

- Beber assim com taça é coisa de grã-fino senhora, eu preciso fazer faxinas em outras casas, preciso sustentar meus filhos – falou a empregada terminando de arrumar a cozinha.

- Você não tem vontade de ser rica por um dia?

- Sinto muito, eu tenho que ir senhora. Vou ao banheiro me arrumar.

- Deixa de ser boba menina. Ainda dá tempo de você ficar... comer caviar... champanhe francês – falou alto para a empregada escutar, já que esta estava sob o chuveiro ligado, deleitando-se com a água que escorria em seu cabelo, seu rosto, seus ouvidos.

-  A senhora vai me pagar agora ou depois?... Preferia se fosse agora... – falou a empregada saindo do banheiro.

- Depois eu pago, pago o dobro, mas fique...

- Não, não posso...

- Medo eu? É improvável que a empregadinha não tenha medo de nada – pensei. Você já limpou a sala menina? Já lavou os quartos, os banheiros? Tem certeza? – disse em tom de reprovação.

- Seu apartamento está reluzindo como ouro senhora – falou a empregada dirigindo-se à sala.

- Eu vou pagar o dobro a você agora. Agora, está ouvindo – disse Glória dirigindo-se ao quarto. Menina... Menina... Você está aí não está?... NÃO!... Menina, está me escutando, eu posso demiti-la hein! Ai meu Deus! – disse ela com medo ao perceber uma barata em cima de sua cama.

Glória saiu correndo do quarto gritando pela empregada. Correu pra sala, abriu a porta, gritou por ela da escada que dá do seu andar para o inferior. Estava com medo de voltar ao apartamento, voltou porque tinha medo de ficar ali sozinha no corredor... o elevador... Assistiu Vestida para matar e desde então tinha medo de ficar sozinha no corredor. Entrou no apartamento e fechou rápido a porta da sala. Respirou forte sustentando-se na porta fechada. Resolveu voltar ao quarto, porque possivelmente a barata não estaria mais lá.

- Ai meu Deus! – gritou olhando a barata ainda em cima da cama. Parecia até que estava se bronzeando com a iluminaria do teto, com as pernas cruzadas e óculos escuros. Meu Deus, que nojo!

Glória ficou tão estupefata com a presença da barata que ficou imóvel na porta do quarto. Hipnotizada por uma baratinha que se divertia com o calor da iluminaria do teto. Ela só se moveu quando sentiu seu hobby perturbado com a presença de Glória. Foi nesse momento que Glória descobriu que ela tinha asas. E a barata voou justamente em direção à porta do quarto. Glória gritou e correu para a sala.

- Asas... ainda por cima asas. Uma infeliz, querendo acabar comigo – disse ela encolhidinha no canto da sala. Eu não tenho medo de nada na vida, mas de barata... A culpa é daquela empregadinha...

Depois de tanto reclamar, Glória escutou o silêncio do apartamento, um silêncio que tomava o prédio todo. Parecia que estava sozinha, mas sabia da existência do inimigo silencioso.

- Meu analista já me disse que tenho que perder minhas fobias histéricas. Essa é uma: medo desse ser que me faz lembrar que sou desprezível, pequena... Ai meu Deus, como eu sou desprezível, preciso ser corajosa. Coragem Glória!

Levantou-se do canto da sala decidida e dirigiu-se à cozinha.

- Menina! Faz aquela macarronada que eu gosto muito, que só você sabe fazer. Aquele molho de espinafre maravilhoso... Parabéns, a cozinha está limpíssima... Talvez eu aumente seu salário... Pega um copo pra mim menina... Vou tomar água...
Lá estava a barata de novo. Na cabeça do pingüim feito por encomenda, por um artista plástico, que estava sobre a geladeira.

- Ai meu Deus! Deus, se você existe me salva agora. Eu tenho medo, você conhece todos os corações...
Glória viu a vassoura encostada na parede da cozinha e decidiu a passos lentos pegá-la. A cada passo que dava percebia que a barata dava um passo a seu modo no pingüim, parecia não ter a classe de conhecer um pingüim de geladeira estilizado, pois se divertia muito passeando nele.

- Peguei a vassoura. Deus existe, oh meu Pai!... Agora você tem que sair daí menininha. Seja boazinha comigo. Eu gosto muito de você, mas não me dê tanto trabalho.

Parece até que a barata escutou as súplicas dela. Decidiu voar do pingüim direto para a cabeça de Glória. Ela gritava e a barata se enrolando no cabelo dela. Gritava e a barata passeando na cabeça dela.

Glória correu pro quarto, gritando com o bicho pousado sobre sua cabeça. Abriu o guarda-roupa e pegou um chapéu que tinha comprado numa viagem que fez a Londres. Prendeu a barata na própria cabeça com o chapéu.

- Calma! Calma! Estou cansada... Vou beber um copo d’água. A barata vai ficar sufocada aí em cima, e vai morrer, linda de pernas cruzadas e óculos escuros.

Ela bebeu um copo d’água e foi sentar-se no sofá da sala para descansar. Contou no relógio um espaço de trinta minutos e resolveu tirar o chapéu. Resolveu fazer a coisa devagar, para não assustar a barata, para não fazê-la sumir, sem histerismos. Ao retirar o chapéu da cabeça, lá estava ela pregada no fundo.

- Bonitinha... Tão inerte. Estará morta? Talvez esteja se bronzeando... Posso estar atrapalhando.

Balançou o chapéu de leve sem resultado. Balançou de leve mais uma vez. Balançou com força e a barata saiu voando em direção à parede da sala.

- Condenada... Você está condenada infeliz – falou Glória correndo para a cozinha pegar a vassoura que deixou cair.

Voltando à sala encontrou a barata ainda na parede, Perdeu o medo e a calma. Avançou para a parede com a vassoura levantada. A barata voou para o lustre. Deu uma vassourada no lustre. Ela voou para um Tomie Otake. Deu uma porrada no quadro. A barata depois dirigiu-se para a garrafa de champanhe, estava na altura da rolha, parecendo até que queria abri-la para se embriagar. Glória a perseguiu. A barata parecia querer voar por todo o apartamento. Foi para o banheiro. Diretinho para o chuveiro. Queria tirar a ressaca do bronzeamento. Voou para a cozinha, caminhou sobre o caviar exposto na mesa. Parecia ter um fino paladar. E Glória foi batendo, batendo em tudo que era coisa que existia no apartamento. Quebrou abajur, garrafas, lustre, copos e pratos, o pingüim...

Glória desistiu de perseguir a barata, estava estressadíssima. Resolveu deitar-se sobre a cama, olhando para o teto e abraçando a vassoura. Ela dormindo e a barata continuando a passear pelo apartamento. Caminhava para baixo do sofá, saía de lá e sumia, repetidamente, como que afastando o sofá. Passeava por entre os destroços. Corria para a cozinha, voltava para a sala, retornava à cozinha. Passou por debaixo da porta da sala, foi até o começo da escada do andar, foi até a porta do elevador, pegou o elevador como se tivesse ido espiar o saguão do prédio e voltou pro apartamento.

Ao abrir os olhos, Glória percebeu que já era a manhã do dia seguinte. Levantou-se ainda sorumbática. Apoiou-se na vassoura para chegar à porta do quarto, estava cansada. Estupefou-se com a destruição que provocou no apartamento. Teria mais medo de ficar sozinha ou de barata?, iria levar isto para seu analista.

- A culpa é daquela barata, a asquerosa.

Primeiro limpou o que foi destruído em todos os cômodos do apartamento. Depois decidiu procurar pela ré. Prometeu a si mesma encontrar a maldita. Só encontrou a produção barateana: ovos por todos os cantos dos cômodos. Ficou histérica, achando que sua cabeça também estava cheia de ovos de barata. Correu para o banheiro se lavar. Ficou sob o chuveiro com roupa. Usou três tipos de shampoo, dois cremes-rinse. Saiu ofegante do banheiro, com muito ódio:

- Vocês não valem nada. Eu sou superior a vocês. Vou destruí-los, sem deixar vestígios. Ela deve ficar muito brava, a baratinha – disse Glória histericamente gargalhando, correndo por todos os cômodos e pisando, estralando todos os ovos.
Deixou o quarto por último, destruiria os últimos descendentes e cairia na cama de cansaço. Pisoteou todos com toda a raiva que sentia da barata. Não sobrou nenhum ovo.

- É uma pobreza ter uma produção tamanha dessa – falou ironicamente.

Com toda a raiva que sentia por Glória, a barata esperou o ato final no quarto e partiu da parede da sala. Nunca tinha voado tão rápido, com os dentes trincados, os punhos fechados. Passou pelo corredor, salivava prevendo um assassinato.

- Quem quer a companhia da dona baratinha que tem fita no cabelo e sem dinheiro na caixinha – cantava Glória no quarto, dançando com a vassoura na mão.

A barata arregalava os olhos, ainda salivava... Chegou à porta do quarto. Viu Glória divertindo-se num baile particular. “Quem quer a companhia...”.

Glória olhou para a porta, viu a barata se aproximando em câmera lenta. Largou a vassoura com medo, e gritou em câmera lenta: NÃO! Viu a barata abrindo a boca, com a saliva escorrendo, chamando o nome dela.

- Desculpa... Eu não sabia que eram seus filhos. Quem quer casar com a dona baratinha...

A barata bateu no peito de Glória, como se estivesse dando uma porrada. Derrubou ela na cama.

Glória abriu a boca, mas não conseguiu gritar. Desmaiou, fechou os olhos.


No dia seguinte, o marido aparece no apartamento.

Colocou a chave no ferrolho da porta do apartamento, já estava aberta. Tudo estava silencioso no apartamento, mas também tudo muito arrumado. Algumas garrafas a menos, deve ter bebido além da conta. Foi à cozinha beber água, a lixeira cheia de algumas coisas que não deu pra ver. Bebeu água, dirigiu-se ao banheiro. Tomou um bom banho, como não tinha tomado antes. Enxugou-se, vestiu uma roupa e foi até o quarto. A porta estava encostada, a abriu e entrou.

- Glória! – disse com estupefação ao vê-la desmaiada sobre a cama.

Algo coroava seu pescoço. Se fosse um colar diria:

- Que Glória!

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