O plagiador (2018) – Melhores contos IV (inédito)

Simão Farias Almeida


O corpo explodiu na câmara frigorífica três, pouco antes de Gonzalez abrir a porta e deixar entrar os raios de sol de um dia quase quente. Ensaiou um desaviso, apesar de trabalhar há dez anos no Instituto Médico Legal: entrou na sala fria sem fazer uso da máscara, sempre utilizada para fugir do odor e das bactérias comuns às vias respiratórias de quem lá trabalha. Pior é seguir a rotina de cuidar de cadáveres diante da crise política e econômica que assola o país. Eles costumavam explodir devido ao acúmulo de bactérias hospedadas a médio e longo prazo por conta do desserviço dos poderes públicos ao não distribuir recursos direcionados às práticas de exumação farmacológica e médica. Gonzalez colocou rapidamente a máscara sobre o nariz ao ser invadido pelo cheiro putrefato presente na câmara há semanas. Fechou a porta da sala e encaminhou os passos até a gaveta na qual estava o corpo recém-explodido. Era um homem adulto com trinta e cinco anos, dois a menos que ele. Não conseguiria mais descobrir a causa mortis, pois o crânio e o peitoral ficaram em fragalhos. No momento quando colocava as luvas com a intenção de examinar um dos braços do defunto, assombrou-se ao ouvir o barulho vindo de outra sala fria ou talvez do pátio externo do instituto. Desistiu de examiná-lo porque as pancadas foram progressivamente aumentando. Saiu às pressas da câmara três, sabia que era o único presente dos três últimos funcionários ainda não demitidos pelo governo.


As pancadas ainda aumentavam enquanto ele procurava o lugar de onde vinha o barulho. Chegou a abrir duas salas frias, porém elas seguiam em seu silêncio sepulcral. Enfim, abriu a porta de acesso ao estacionamento do IML. O rapaz sob um crônico nervosismo o abraçou sem demora, barba contra barba, pelo com pelo. Gonzalez permitiu aquele contato por mais de um minuto. Antes de afastar-se, o outro foi deslizando a face do rosto na sua face até os lábios se tocarem. Que se passa? Respondeu sem responder a pergunta. A porta... fecha. Não poderia ter feito isso. És um hombre, gosta de mim asi? Não está em questão... A cidade... Gosto de lábios macios ou quentes, disse ele tocando sua boca, mas não esperava a abordagem... Algo estranho está acontecendo lá fora. Quem é você? Precisa saber que tudo está deserto... Outra explosão ocorre na câmara frigorífica ao lado. De onde você veio?, questionou tirando as luvas. Javito pegou na mão dele, tentando convencê-lo a ir ao estacionamento. Não, os corpos estão explodindo, preciso cuidar deles. A minha esposa... Vamos! Não posso, não te conheço. Você pode me conhecer se quiser. Seus lábios praticamente me forçaram a isso. O vento fez a porta da copa fechar naquele momento. Gonzalez puxou o outro pela mão em direção a primeira sala fria do corredor.


- Essa não... – referiu-se à câmara três, onde o outro quase examinou a situação do corpo do cadáver explodido.


Foi a vez de Javito puxar Gonzalez pelo braço até a copa do instituto. Atravessaram o corredor com várias câmaras frias e invadiram a sala de refeições. Um jogou os pães adormecidos, o outro espalhou os talheres da mesa ao chão. Tocaram pelo com pelo, suaram pele sobre pele, explodiram desejos, aprofundaram-se, rijo no rijo. Mas de onde você veio? O maior segredo deste necrotério é você, não esperava encontrar um hombre vivo sob testosterona em alta. Não tinha encontrado um homem em mais de cinco anos de vida. Meus filhos... Cala-te! Não digas más, forçou ele com as mãos contra seus lábios. Precisamos ir... Eu não vou sem saber a direção... quanto tempo vai levar... minha família...  Nossa, um gemido? Um grito? Eles devem estar entrando no pátio... Deve ter sido um dos cadáveres em uma das salas frias... Os mortos-vivos... Como? A câmara dois ou a cidade desejavam falar algo a eles, ainda indecifrável, pouco traduzível. Vamos comigo... Não quero... não posso...


Javito mais uma vez puxou o outro pelo braço, dessa vez de forma mais enérgica, sob passos apressados até romper a barreira da porta de acesso ao estacionamento. Reduziram a velocidade quando perceberam o pátio silencioso, a praça vazia em frente ao IML, a cidade ainda adormecida, cidade morta, sitiada, ou seria morta-viva como disse ele? Eu preciso voltar pro trabalho, os corpos... Você não precisa mais ser fiel a um empregador do qual não recebe proventos justos... não precisa mais ser fiel, ser soldado do governo... Não estou sendo fiel nem mesmo à minha mulher... Parece que todos foram embora... Xiiii... está ouvindo? São eles... Como eles? Passos se sobrepunham às folhas secas da rua... poderiam ser eles... 


- Os filhos abandonaram sua pátria... estamos aqui bem atrás de vocês.


- De onde vocês vieram?, questionou Gonzalez. Filhos da pátria?


- Ele ainda está atordoado... relevem por favor, comentou Javito.


- Vamos meus jovens... precisamos abandonar essa terra também... – disse um dos mentores da liga dos iguais.


- Do que vocês estão falando? Corpos chegam todos os dias no necrotério... eu preciso estar lá para cumprir minha missão...


- Só sobraram os mortos, aos vivos dá-se a alternativa de asilo em outras terras...


- Ele precisa de doses homeopáticas de esclarecimentos, alertou Javito.


- Mortos, vivos, vocês estão embaralhando tudo?


- O ditador... ele promoveu toda essa crise social generalizada... É arriscado permanecer aqui... – orientou o mentor.


- Vocês estão loucos... os mortos não têm nenhuma culpa pelo que está acontecendo nesse país... Aos mortos não se dão as batatas, e sim a terra bendita... a última morada...


- Calma Gonzalez, pediu Javito.


- Eu preciso ir... e como você sabe meu nome?


- Não vem ao caso agora jovem... Não se precipite... Venham conosco! – convocou outro membro da liga.


Gonzalez ainda olhou fixamente para eles antes de apressar os passos com a intenção de voltar ao IML. Javito ensaiou uma atitude de tentar impedi-lo, porém, a liga dos casais procurou tranquilizá-lo. Eles sugeriram que Javito o acompanhasse e se responsabilizasse por oferecer os devidos esclarecimentos.


Gonzalez forçou a porta enferrujada da entrada principal do necrotério. Caminhou em direção à sala fria número três, mas decidiu entrar na copa ao ver o par de luvas abandonado antes do sexo quente. Esticou a parte dos dedos, fez um rápido exercício de alongamento nas mãos e colocou pensativo as luvas. Ainda olhou a mesa desarrumada, só depois deixou a copa e se dirigiu à câmara frigorífica onde mal iniciou o procedimento no cadáver explodido. Surpreendeu-se ao encontrar Javito próximo à gaveta dos restos mortais não exumados.


 - Eles estão certos... são iguais a nós... precisamos acompanhá-los.


- Você continua com essas bobagens... me deixe trabalhar... Vá embora por favor...


- Os restos mortais disponíveis nesta gaveta fria...


- Esqueci a máscara..., preocupou-se Gonzalez.


- Não é mais preciso meu caro...


- Você quer me enlouquecer... é isso?


- Não há mais restos mortais... Eu estou inteiro a sua disposição...


- Aonde vai levar essa longeva retórica?


- Eu não explodi à toa algumas horas atrás para continuar me concentrando em desperdícios humanos. O tempo urge e não vou me apegar a moralidades e sacrifícios.


Gonzalez olhou seriamente nos olhos de Javito e gargalhou bem alto com o intuito de chamar atenção dos seus desentendimentos. Em seguida, voltou a fitar seus olhos numa empatia controlada e revelou sua história:


- Eu também não explodi por acaso... Sei de todas as verdades enumeradas, mas tenho comigo a responsabilidade do silêncio para não atrair os ouvidos programados...


Javito arregalou os olhos e ensaiou dizer algo, sendo impedido por Gonzalez.


- Eu não sei o que os poderosos colocaram em nossos corpos, quais as bactérias selecionadas ao nos utilizarem em seus experimentos.... todavia, estamos aqui neste necrotério, todos mortos, sem podermos fazer mais nada... Quero me permitir pelo menos a descobrir algo...


Javito ficou espantado com a revelação e olhou admirado os casais, quando eles aparecerem na sala fria onde se encontravam:


- Como vocês explicam tudo isso?


- Cada mistério a seu tempo e tempo... todos teremos agora.


- Eu preciso descobrir o uso que fizeram de nossos corpos...


- Nada disso é mais necessário – revelou um dos mentores da liga. Confie em nós...


- A causa mortis é o pretexto para o conforto eterno dos desencarnados – insistiu Gonzalez.


- A história vai falar por nós... o estado de coisas ainda não se configurou por inteiro...


- Por que vocês têm tanto interesse nos explodidos?


- Nossa preocupação é com os diferentes. Todos aqui têm amor pela outra metade da maçã.  E se isso te acalma, nós também somos explodidos e estamos em outra etapa da nova vida, deste modo, podemos orientar outras almas como vocês – tentou apaziguar outro mentor.


- Quando vocês explodiram?, questionou Javito.


- Há alguns meses, ainda estamos em processo de aprendizagem igual a vocês.


- Devem saber o que fizeram a nossos corpos então..., insinuou Gonzalez.


- Não temos mais tempo. Javito, dê o apoio necessário a ele – insistiu outro membro da liga.


- Não me toquem..., gritou Gonzalez.


A porta da câmara frigorífica foi aberta e as duas presenças etéreas entraram. Aos poucos, Gonzalez foi reconhecendo a fisionomia dos seus pais com seus sorrisos de café da manhã e os braços de aconchego dos jantares ao pé da lareira. Ele ainda podia chorar, e assim o fez ao confirmar em sua alma aquelas presenças parentais perto de si.


- Vocês também foram explodidos?


- Não meu filho, respondeu a mãe. Nós embarcamos antes de tudo isso começar.


- Pai, o que vocês fazem aqui?


- Você vai compreender quando partirmos. Não podemos dizer nada por enquanto.


Ele aceitou as mãos maternas e se entregou ao propósito da liga dos casais, a liga dos iguais. “Se despeça dos seus mortos e do necrotério onde você gastou as horas e os anos”. Parecia o discurso de alguém. Na verdade, era um pensamento uníssono de todos os presentes. Gonzalez entendeu que deveria dizer adeus às suas próprias migalhas e aos restos de Javito também. Os dois foram os últimos a passarem pela porta de acesso ao pátio do IML.


Andaram léguas até o porto da cidade onde um barco já estava atracado, responsável por levá-los a outras terras. Não sabiam quais, mas confiavam nas fórmulas secretas das ondas do mar. Gonzalez e Javito se abraçaram, assim como seus pais e os casais de iguais da liga. Um dos passageiros conferiu se estavam todos a bordo e deu sinal ao tripulante chefe para iniciar viagem. O barco começou a flutuar, promovendo aos presentes as necessárias revelações. Eram muitos rostos... e muitas línguas, muitas vozes, falando ao mesmo tempo, gritando, blasfemando, mãos e dedos em posições de armas, delírios infernais, cérebros em chamas de ódio, gargalhadas sádicas, labaredas demoníacas saindo pelos ouvidos, narinas e ânus. As mesmas bocas liberando esferas de fogo, forçando os outros a digerir desprezos, maldades deliberadas, coices patrióticos. E tudo isso foi crescendo junto, dentro desses outros, implodindo primeiro cada órgão, matando em seguida e explodindo por fim. Gonzalez e Javito enxergaram tudo com extasiado dolo, mas já não estavam desconsolados. Ali, ninguém copiava ninguém. Se boa parte deles explodiram, alguém acima de todos tratava de ordenar muitos a produzir e reproduzir as esferas de fogaréu, e nesse círculo vicioso, milhões de línguas foram plagiadas sem dar importância às antigas cordialidades. Todos naquele barco então passaram a olhar pro céu. Eram os primeiros minutos do ano na praia de Copacabana, e algumas horas depois, eles estariam em outra terra.

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