Olho mágico (2010) – Melhores contos II

Simão Farias Almeida

Dona Gertrudes costumava se divertir toda noite com as telenovelas até que o horário político ameaçou tal passatempo. Não gostava de ver políticos fazendo as mesmas promessas, tudo igual, bando de fingidos querendo nossos votos. Dona Gertrudes então resolveu deixar o aparelho de TV desligado durante o período eleitoral. Teria que encontrar o que fazer, pois ficarmos sem fazer nada dentro de casa é a mesma coisa de entregar a alma ao diabo.

Dona Gertrudes então resolveu espiar. Nunca o tinha feito, mas já ouvira amigas falarem que se descobre muita coisa espiando, ainda mais quando estamos dispostos a espiar por um longo tempo e de uma só vez.

Foi espiando que ela seguiu os passos do vizinho do andar de cima. Nunca o tinha visto até que resolveu desligar a TV e encontrar esse novo passatempo. O tal vizinho nunca estava só. Sempre acompanhado de rapazes, muitos rapazes, uma penca de rapazes. E Dona Gertrudes ficava imaginando do seu olho mágico como o vizinho de cima tinha tantos amigos. E eram bonitos os rapazes, uns até bonitos demais. O próprio vizinho era muito bonito. Juventude bonita, pensam os pais quando vêem os filhos se divertindo. E ele parecia se divertir com os seus amigos, mas Dona Gertrudes não. Nunca casara, não tinha filhos, admirava era aquela juventude através do olho mágico. Limpava a vista com tanta beleza, eram corpos fortes colados em camisas entre-abertas, homens de porte alto e cabelos sedosos. Fazia gosto acompanhar diariamente a aventura de entrar e sair dos rapazes felizes, sorridentes. Tanto é que Dona Gertrudes passou a limpar cuidadosamente seu olho mágico como quem ajeita as antenas de TV para melhorar a imagem.

Um dia Dona Gertrudes chegou no prédio após uma ida ao supermercado. Cumprimentou a vizinha na entrada, falou do aumento dos preços e, após se despedir, lembrou-se do vizinho do andar de cima.  Não hesitou em comentar sobre ele com a vizinha. Esta, estupefata com a admiração de Dona Gertrudes, comentou sem hesitar. “Então a senhora não sabe? É tudo frango, o bonitão do andar de cima é uma baita de um frango”. E riu ironicamente a vizinha. Sabe todos aqueles amigos, são assim com o bonitão. E a vizinha foi falando e enroscando um dedo no outro, mordendo os lábios, fechando os olhos. É um pecado, um desperdício de homem, de vizinho.

Dona Gertrudes estupefata despediu-se. Entrou no apartamento e tentou descobrir o mistério dos frangos que estavam em uma das sacolas do supermercado. Ficou tentando entender a vizinha, limpou mais o olho mágico para entender a história dos frangos.

Na mesma noite, Dona Gertrudes esperou o vizinho de cima aparecer com algum “frango”. Demorou mas lá estavam os dois sorridentes, conversando, com passos lentos, subindo de uma escada a outra. Ficou esperando quase uma hora a volta dos dois. Então Dona Gertrudes resolveu ensaiar novos passos em direção ao vizinho. Abriu a porta, fechou calmamente para evitar barulho e subiu as escadas. Como esquecera de perguntar à vizinha o número do apartamento do “frango”, foi tentando adivinhá-lo.

O barulho de homem conversando, de copos de vidro batendo-se, denunciou o número do apartamento. Dona Gertrudes então colou um dos ouvidos na porta do vizinho para escutar. Mas o assunto fugia ao seu entendimento. Ainda mais quando a música foi ligada. O barulho aumentou quando um copo de vidro caiu no chão afugentando Dona Gertrudes até o seu apartamento no andar de baixo. Trancou depressa a porta e ligou a TV. Ainda era tempo de horário político.

No dia seguinte, ainda impressionada com a história dos frangos, Dona Gertrudes abriu bruscamente a geladeira e decidiu pegar um frango que comprara no supermercado um dia antes. Descongelou o bicho e começou a recheá-lo com carne, legumes e verduras. Colocou no forno o frango recheado e dirigiu-se ao olho mágico. Pensou que poderia ver o vizinho do andar de cima durante o dia.

Dona Gertrudes comeu o frango no almoço e no jantar. Desligou a TV e foi espiar o vizinho. Para sua surpresa, ele apareceu com o mesmo rapaz da noite anterior. Uma hora depois, decidiu ir mais uma vez ao andar de cima. Encostou-se na porta e ficou a ouvir. A vizinha do lado estranhou ao ver Dona Gertrudes aquela hora da noite com o ouvido colado na porta do apartamento que não era o seu. “Deseja alguma coisa?”, perguntou a Dona Gertrudes. “Ele deve estar em casa, pode bater”. Foi aí que a vizinha fechou a porta e a porta em que fazia sua escuta abriu. Dona Gertrudes ficou branca feito peru de véspera. Mas não foi o vizinho que abriu, era na verdade “o frango” amigo dele. “Deseja alguma coisa?”. Dona Gertrudes correu com medo como peru em dia de morte. “Quem era?”. “Não sei, era uma ‘tia’”.

Dona Gertrudes envergonhada então correu até o seu apartamento. Nervosa errava a chave na fechadura. Quando acertou, entrou bruscamente e fechou a porta com força. Correu até a cozinha e dirigiu os seus passos até o mistério do frango. Tirou o recheio, ficou espiando lá dentro. Resolveu jogar tudo no lixo. Foi deitar-se pensando nos dois “frangos” do andar de cima.

Ao acordar no dia seguinte, Dona Gertrudes teve uma surpresa. Seu olho mágico não era o mesmo. A imagem lá fora não estava nítida. O olho parecia um caleidoscópio, fragmentado, fazendo com que a visão não enxergasse nada por inteiro. A outra surpresa foi que Dona Gertrudes viu o vizinho de cima em plena luz do dia. Mas claro que ele não era o mesmo dentro daquele caleidoscópico olho mágico. Ela o vira, com certa dificuldade mas com toda a certeza, carregando livros nas duas mãos. “O que o ‘frango’ fazia com tantos livros?”.

À noite, enquanto o horário eleitoral rolava na TV desligada, Dona Gertrudes dirigiu seus passos até o caleidoscópio. Minutos depois lá estavam os dois abraçados. O rapaz de anteontem era o mesmo daquela noite. Aquele abraço forte fez Dona Gertrudes ir descobrindo o mistério do frango.

No dia seguinte, espiando durante o dia, após duas horas, ela viu o vizinho de cima abraçado com uma mulher idosa. No caleidoscópio de Dona Gertrudes, parecia ser tão afetuoso o jeito de um olhar para o outro. A imagem fez ela pensar que a tal senhora deveria ser a “frangona”, ou seja, a mãe do vizinho. Dona Gertrudes pensou então nos filhos que nunca teve.
As noites foram passando, ela desligando a TV, limpando o caleidoscópio e espiando. No lado de fora, aqueles mesmos dois da semana passada, de meses atrás, subindo as escadas abraçados. Em uma das manhãs, viu Dona Gertrudes o vizinho do andar de cima se benzendo, parecia terminar alguma oração. Em outra manhã, o vizinho reapareceu com os seus livros. Talvez ele fosse professor ou talvez estudante, talvez de universidade, pública ou privada.

Outro dia Dona Gertrudes resolveu fazer outro frango recheado, mas não se preocupou com o mistério do frango. Espiando à noite a chegada dos dois, pensou em seguir os seus passos e oferecer um pedaço de frango. Desistiu, estava com medo do peru de véspera.

Mas algo inusitado aconteceu em uma dessas noites com o caleidoscópio de Dona Gertrudes. Ela não conseguia ver o que acontecia lá fora. Limpou mas nada conseguia ver. Foi então que decidiu abrir a porta e descobrir o mistério. Havia um pedaço de cartolina preta colada no olho mágico da porta. Dona Gertrudes retirou sem entender nada o que havia acontecido.
Meses depois, em um dia de supermercado, Dona Gertrudes voltou a se encontrar com a vizinha na entrada do prédio. Desta vez, reclamou do preço alto do frango a espera da descoberta do mistério por parte da vizinha. Então esta pediu um momento à Dona Gertrudes como se entendesse o que ela estava querendo entender. Sabe aquele vizinho do andar de cima, o bonitão, pois ele perguntou quem era a senhora, o que a senhora fazia de noite e também de dia. Não falei nada porque cada um tem a sua vida...

Dona Gertrudes deixou a vizinha falando, distraída ao que ela dizia ficou espiando o conteúdo de uma das sacolas do supermercado. Correu então até o seu apartamento, agitou-se na cozinha e levou um preparado ao forno. Depois passou o dia espiando a chegada do vizinho através do seu caleidoscópio mas ele não apareceu, talvez estivesse muito atarefado com os seus livros, com suas orações, com sua mãe, ou com compras de supermercado.

À noite, quando Dona Gertrudes desligou a TV, foi até a cozinha, abriu o frono, saiu do apartamento. Subiu as escadas e dirigiu-se até o apartamento do vizinho de cima. Para sua surpresa o mistério abriu a porta. Estava esperando a senhora, sempre quis saber de você. Ficava espiando do meu olho mágico toda vez que a senhora se aproximava da minha porta. Meu nome é Alexandre e este aqui é o André. Dona Gertrudes então se apresentou aos dois. Vocês parecem rapazes de bem, fiz isto aqui para vocês tomarem com vinho ou com cerveja. Alexandre então retirou o pano que cobria o mistério de Dona Gertrudes. Era um peru recheado com frango desfiado. Dona Gertrudes recebeu um beijo no rosto de cada um dos rapazes. Voltou ao seu apartamento, não aceitou o convite de jantar com eles porque resolveu naquela noite assistir ao horário político. Para a sua surpresa, o olho mágico estava nítido tendo o caleidoscópio se desfeito. 

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