T (2017) – Melhores contos III

Simão Farias Almeida

Havia um tempo em que encostava a palma da minha mão
na superfície das águas do mar costeiro.
Hoje sei que isso é Harmonia.

3.  T poderia estar no Parque Central, no Jardim Japonês ou nos canais de Holanda, importa mesmo que eu encontrarei após a chuva ácida do dia terminar. Falam dos riscos à saúde como problemas respiratórios e dermatológicos, incluindo desenvolvimento de câncer. As previsões meteorológicas informam o horário, a região e a intensidade da cáustica chuva a fim de os avisados prevenirem-se do nefasto tempo. E T ficava à mercê das mudanças de clima. Preferia ter uma vida mais tranquila, porém, tinha que se submeter ao lastro ácido indesejado. Lembrava do tempo quando se arejava nas águas puras das chuvas não químicas. Esse passado remoto ficaria para trás, gastava agora sua atenção com o aviso das sirenes anunciando a permissão de sair de casa. Assim, encontrei T ainda incomodada em suas horas reguladas pelos avisos diários emitidos pelos megafones instalados nas ruas e avenidas da cidade.

Notei sua costumeira indignação ao sentar no mesmo banco da praça de sempre. T gostava de liberdade e queria ganhar o mundo, mas sabia dos riscos que sofria. Se ali se submetia ao tempo das chuvas ácidas, talvez não escapasse de tsunamis, fumaças radioativas, explosões de gases solares. Em meio ao congestionamento de satélites na estratosfera terrestre, enxergava com pesar a destruição da camada de ozônio. Falei que deveria viver o presente das novas e duras realidades, pois o passado ficou no plano mítico. T, no entanto, não se rendia. Queria ganhar o mundo para saber se ainda poderia encontrar lugares intocáveis, pelo menos um. Se conseguisse, narraria seu próprio Gênesis como a presença primeira no paraíso. T, todavia, tinha inquietações infinitas, se colocasse os pés na realidade descobriria o tempo agora de apocalipses. Neste caso, seria a mulher vestida de sol a espalhar vida pelo planeta agonizante devido aos contrastes bruscos entre calor e frio extremos. T tem propensões alérgicas, necessita de um clima saudável, ameno, entre o aquecimento e o resfriamento. Ainda não entendi como T sumiu das minhas vistas feito éter e só reapareceu nas notícias sobre seu paradeiro semanas depois. Soube que foi encarar as florestas geladas da Sibéria. Lembrei da mulher vestida de sol suportando baixas temperaturas, porém não era homem de se entregar a qualquer risco em seu caminho. T passou por martírios dolorosos, tendo as vértebras chacoalhadas como os trilhos sob um trem que usa mais carvão, fogo para não enferrujar e congelar na neve.  Assim soube da perdição de T nas terras da Sibéria.

Outros já disseram que havia engano nessa história de aventura asiática. T na verdade estava sobre um mármore frio em alguma cidade da Groenlândia submergindo no mar gelado saturado pelo volume do gelo derretido dos grandes blocos de iceberg. Em qualquer um dos casos, vivenciava uma experiência de morte na qual o corpo esfria para o espírito sair com mais facilidade, agasalhado para não sofrer choque térmico diante da consciência do não corpo, além corpo. 

Continuei em busca de notícias sobre T e elas vinham fragmentadas de diversas vozes e sujeitos. Fiquei surpreso ao saber que já estava em um quarto de hospital em Milão. A cirurgia pareceu um turbilhão de sensações termodinâmicas, seu corpo foi estremecido por terremotos seguidos de tsunamis até se afogar como uma ilha do Pacífico Sul. Olhava pro teto do quarto lembrando das chuvas ácidas acompanhadas pelas janelas de nossas casas, queimando a pele de animais sem lares e derretendo minuciosamente e sem pressa as folhas sintéticas, produzidas em laboratório, das árvores de plástico nas avenidas. Queria mesmo era estar assistindo à aurora boreal na Noruega, com ela sonhou ao abrir os olhos após o fim da cirurgia. Mas T sabia que tal aurora não seria a mesma após o outro lado do mundo sair do eixo devido aos terremotos e tsunamis da semana. Era linda a aurora do passado com tons de violeta iguais à cor da sua camisola pós-cirúrgica.  Tinha a consciência da interferência de reações químicas produzidas pelas fábricas de Pequim, que aumentaram em mais de quinhentas, no espetáculo das terras frias norueguesas. Mesmo assim lembrava da aurora boreal de outrora nunca vista.

T passou por transformações nas últimas horas. Esfriou seu corpo nas restritas áreas geladas do Alasca, explodiu feito vulcão adormecido do Havaí sofrendo erupções mensais nos últimos tempos, parecia ter retirado de si as pedras negras das praias havaianas resultantes da solidificação das lavas vulcânicas até se refrigerar nas praias da Califórnia ao ver seu corpo tomado por uma nova felicidade decorrente das transformações sofridas. T queria mudar o mundo, o seu mundo. Sabia que tinha um novo ser dentro de si, quando ele saísse as placas tectônicas deixariam de se friccionar e ranger como dentes atacados de bruxismos noturnos. Não se banharia mais nos tsunamis semanais do lado pacífico sul do seu corpo, e nem seria acometido inadvertidamente pelas chuvas ácidas diárias, pois as sirenes alarmariam suas correntes sanguíneas e explodiriam em mensagens nervosas de segurança.

As placas tectônicas de T acalmaram-se após a aurora boreal fluir das suas camadas genitais, explodindo cores pelas terras de África e dos Alpes suíços. Num estado alfa e ômega, suas áureas recuperaram as cores naturais dos bancos de corais oceânicos, sua libido transpirou em rios necessários aos ecossistemas ribeirinhos da Amazônia, seus gases não liberaram carbono arriscados à mesopausa.

T passou por momentos de menopausa, andropausa e de calafrios de pressão baixa antes e após a cirurgia. A ansiedade paralisava seus movimentos de mudança, estima de si, renovação física e espiritual. No momento, soube que T rodopia em torno do próprio eixo e grita pro mundo suas mudanças. Espero reencontrar T com ou sem chuvas ácidas. Estou ansioso por ver sua transformação. Falam de sua predisposição parental, que adotou um casal de crianças: um menino agitado e disposto a aventuras, e uma menina mais soturna, ele dado a espasmos de calores glandulares, ela a uma copiosa sensação das pressões baixas de T. Queria fazer algo pela humanidade, assim decidiu criar as duas crianças, uma dupla a reunir os pólos feminino e masculino da androgenia de T. Deveria domar os dois para ter um equilíbrio na própria casa: o menino ser menos sagitariano, a menina mais ariana.

Essa história poderia acabar assim: T adormecida no ventre de Pachamama sonhando futuros para todos os seres vivos e não vivos, todos filhos seus. “O tempo de outrora era soberbo. Agora é o tempo da terra, tempo sem dono, de todos”, disse Lea.


2.  Soube que T é como uma rocha vagando no espaço, no impacto contra outra, forma um planeta, na mira de um asteroide carregando gelo resfria o fogo decorrente do trauma da colisão espacial. T tem vulcões dentro de si explodindo para regular a temperatura de suas profundezas. Passou pela cirurgia sem anestesia, sangrou como lavas encardidas, perdeu massa a fim de ganhar novas formas. Após explodir em gases e pressões extremas, abriu o peito e de sua profundidade côncava saiu um galho com folha verde, uma apenas já prenunciava a natureza futura de T: florestas, árvores, folhas tombadas por seu infinito particular. Assim deixou o jardim japonês na última vez na qual nos encontramos, a uns exibindo a quase árvore como um troféu, a outros adaptando seu ecossistema ao redor àquele milagre por mérito das expiações pelas quais já passou – esquentou, esfriou, refrigerou, explodiu, umedeceu, secou, desertificou, aridificou. Poucos passam pelo que T passou, sofrer tantas transformações e manter-se firme.

Amigos contam a flanagem de T pelos jardins de Holanda, admirando a polinização das flores e esperançando pelo dia em que as suas brotariam do galho particular. Há quem viu no Oriente Médio com o galho ocupado por pombas brancas, exibindo sua mensagem aos extremistas religiosos, fazendo chover na aridez da terra de Canaã. As últimas notícias narram seus prodígios no rio Amazonas, em posição de yoga na calmaria das vitórias régia, abertas pra natureza, seguindo o ritmo do leito e da floresta. Tinha consciência de ser Pacha, um dia poderia chegar ao nível espiritual de Pachamama. T já tinha passado por tempestades e dilúvios no leito do hospital, depois queria a paz dos lamas. É forte, sobrevive aos bons e maus tempos, da primeira rocha fez sua força e profundeza. No entanto, pra conquistar a tranquilidade desejada teria a missão de domar as crianças adotivas.
T tinha que preparar o menino para não interferir nas regularidades da natureza. Acalentava na rede com modas e cantigas aprendidas com seus avós. Quando em corpo frio, o menino era mergulhado nas águas do mar, relaxado ainda mais pelo sal marinho não transmitiria calor às marés. Já a menina recebia massagens energéticas a partir do friccionar das mãos a liberar calor a fim de regular a temperatura tendencionada para os calafrios. T amava aqueles dois, nunca tinha pensado em ser pai e mãe, agora pensa em estar no controle de uma parentalidade responsável. Quando as crianças olham pro seu peito e enxergam o galho com uma folha só, pensam que T nunca vai morrer, passando pelas estações, perdendo folha, ganhando folha e até flores, revisitado o galho pelos pássaros migrantes.

Enquanto conto aqui essas histórias, escutei que sobreviveu a um furacão no Kansas. Os dois filhos de criação também participaram. Ao ver o céu escurecer de nuvens de tempestade, prenunciou o mundo transtornado em redemoinho. T não tinha opção, não havia abrigos perto de si, rachou a terra sobre seus pés como um cânion e lá se enterrou com as crianças. Só o galho e sua folha verde prestigiaram a força da natureza daquele furacão. A terra tremeu no Japão e os três saíram das profundezas como árvore. T sempre faz mágicas com o pouco que tem: do galho solitário cresceram outros, e o menino e a menina em seus calores e sua frigidez regulavam a fotossíntese do ecossistema arboreal. T explodindo aurora com sua seiva escorrendo pela terra, o corpo feito árvore e o galho feito abrigo.

T e seu verde ambulante viajaram por cidades para causar impressões – Rio de Janeiro, Kyoto, Paris... Tinha uma missão, ser e pensar como árvore. Assim teria a velhice necessária a fim de chegar antes do tempo em Chernobyl, Hiroshima, Nova York... T queria voltar ao passado e ser mais veloz que o ódio, assim como amava sua menina e seu menino, tinha a consciência da parentalidade a mudar tudo, ganhava plasticidade de modo a abraçar o mundo. Seu filho também passava fome no Sudão, padecia entre ruínas no Haiti, sofria no desabrigo causado pelas tragédias ambientais. T ama como sua árvore louva os nutrientes regadores de suas raízes. 

Então saiu pelo mundo feito árvore. Contorceu-se nas próprias curvas, estalou seus próprios galhos para fazer sombra no deserto de Dubai. T esticou suas raízes por debaixo da terra até sua menina molhar as areias escaldantes, deixando o menino na aprendizagem yin e yang. T ainda tinha a memória da pedra, mas se sintonizava no presente de árvore, também previa a imprevisibilidade de outro futuro animado ou inanimado. 


1. Também soube as mentiras contadas sobre T: não viajou para fazer sua cirurgia, não adotou as duas crianças (parece que não conseguiu domá-las ao ponto de poder viver a vida toda em harmonia com elas), não desabrochou o galho de árvore em seu peito, nem rodopiou sobre seu próprio eixo a fim de mudar seu universo particular, sem vibrar auroras de suas profundezas. Eu a esperar T no mesmo banco após a chuva ácida do dia, talvez queira evitar confrontações acerca das declarações sobre si.

T anda pelo mundo procurando o centro, o grau zero de sua massa. Pensou que talvez estivesse no continente africano onde tudo começou. Também procurou nas profundezas do Atlântico em meio aos seres oceânicos ainda não catalogados pela ciência com os quais possui animosidade e intimidade. Pulou de bungee jump no Kilauea a fim de ultrapassar a crosta e o manto até chegar ao núcleo do planeta como procurasse um contato consigo. O menino e a menina supostamente adotados por T na verdade são a soma do seu fluxo bipolar de temperatura. Se pudesse lhe falar, diria sobre o centro do universo estar em Cerro Blanco na morada de Pachamama.

Neste momento, T pode estar divagando em algum deserto ou grande cânion, ou na assembleia da ONU discursando sobre as mudanças climáticas, ou ainda na caneta do Papa ocupada com suas encíclicas. Não sei até que ponto posso ir falando verdades ou inverdades sobre T. Poderia eu plagiar sua própria escrita autobiográfica emergida na natureza como um quadro expressionista ao mostrar as auroras subjetivas vibrando energias pelo mundo exterior?

T pode estar no começo de tudo, no primeiro cometa vagando pelo espaço ou então no fim quando qualquer pessoa presenciaria e finalmente daria atenção a sua autobiografia expressionista. A chuva ácida do ano 2.145 já passou, não sei se T vem. Pode estar na ocupação de cuidar das crianças, na aula de danças circulares, ainda nos procedimentos cirúrgicos, chorando o tsunami de Lisboa... os boatos sobre T faz pensar que está vagando entre Júpiter e Saturno ou rumo a um buraco negro. A última informação é um grande meteoro caindo sobre


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